Hoje, sem ti, já não consigo pressentir a sombra magnifica da noite sobre o rio.
Nada se acende em mim ao escrever-te esta carta.
Só a foz do rio parece guardar a memória de uma fotografia há muito rasgada. O vento, esse, persegue a melancolia dos passos pelas dunas.
É possível que os Verões ainda sejam o que eram com os corpos estendidos ao sol, e a oferenda de um sorriso malicioso a confundir-se com o marulhar das águas.
Mas ninguém possui verdadeiramente alguma coisa. As coisas do mundo pertencem a todos e, sobretudo, a quem aprendeu a nomeá-las.
E eu já não consigo nomear nada.
Não me lembro sequer de um nome que resuma o movimento desastroso dos dias.
O teu rosto deixou de se acender na ilusão de te possuir mais uma noite.
Nada evoca esse tempo de frémitos de asas sobre a pele.
Nenhum rumor do rio sobe até mim. Nenhuma ferida ficou por sarar.
Deixei que os ventos e as chuvas apagassem o desejo no rastro dos répteis incandescentes.
Sinto-me como a haste quebrada da urze ao abandono nas areias varridas pelo oceano.
Contemplo as dunas, o casario contra a noite que se fecha, as luzes, o rio, as sombras das pessoas, o mar como uma lâmina sob a lua e a ausência alastra em mim, cortante.
Sento-me onde, dantes, me sentava contigo, (...).
O que me rodeia move-se no interior surdo de suas próprias sombras.
É um movimento invisível através de territórios que o olhar mal assinala.
Concentro a minha atenção nesses lugares que a luz não pode alcançar.
Lugares escuros onde se escondem receios antigos e desilusões.
Mantenho-me imóvel, tacteio teu rosto diluído na salina claridade do entardecer.
Adormeço ou começo a subir o rio para fugir à imensa noite do mar.
Escreve-me, peço-te, enquanto a tua imagem permanece nítida perto de mim.
Vou prosseguir viagem assim que o dia despontar e o som do teu nome, gota a gota, se insinue junto ao coração.
Al berto, O anjo mudo
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